Conta a lenda que havia um Sábio,
que numa manhã de Sábado pediu que a moça narrasse a vida como a imagem vista
do trem para o cego que senta ao seu lado durante a viagem (ou mais ou menos
assim).
Pois bem,
Até para ela a imagem é um tanto
turva. Não consegue enxergar muito bem o que vê, talvez porque o trem corre
com muita velocidade nos trilhos da vida. Passou rápido tudo, muito rápido. E
ontem, ainda menina, tirava cochilos à tarde depois de voltar da escola. E aquela negra, de
longos cabelos cacheados, que parecia a sua Ama de leite estava sempre lá. Com
afagos, assegurando que a ausência da mãe não doesse tanto.
O tempo passou, a Ama se foi e a
tal ausência nunca foi preenchida. A mãe nunca estivera ali de fato. Então
cresceu uma pessoa deformada pela ausência dos pais. A carência lhe tomou a
vida, ganhou corpo, forma e devora lentamente.
Violentamente se entrega as
oportunidades de sorrir, não calcula, não mede esforços – quer agradar. Mas foi
talhada por outra espécie de humanos, se é que são humanos, talvez sejam
marcianos. Talvez não consiga mesmo se encaixar neste mundo voraz, imediato, oco.
Não entende as regras do jogo, não sabe jogar.
Deseja ser um pouco melhor a cada
dia. Senta, ora, medita, reza, vive cercada do seu misticismo. Às vezes ajuda
outras não. Na maioria das vezes vive questionando o porquê das coisas – é muito
questionadora, ainda não descobriu a hora de parar de perguntar.
Acorda sorrindo, manhosa, cheia
do carinho que guarda para compartilhar. "Tem a cara lavada, a alma exposta." Sorri com os olhos.
No fundo o que a moça quer é que
a paisagem lhe pareça menos turva e que além da neblina possa existir o sol. E
que lá, existam ainda as cervejas, os amigos, as raposas e as uvas, e o abraço
daquele que estava esperando enquanto tudo parecia quase apagado.